Resenha: Simplesmente o Paraíso - Quarteto Smythe-Smith #1 Resenha: Uma Lição de Vida Resenha: Era uma Vez no Outono Resenha: Secrets and Lies
1

A Divindade Melancólica


Segure o fôlego. 

Vamos lá, somente por sofrimento solidário.

Eu não podia respirar.

Viu? 

A pressão em meu peito era demasiadamente forte e um calor estranhamente reconfortante partiu dessa zona para o resto do meu corpo. A sensação de dormência já abarcava os meus membros, contudo eu ainda segurava aquele último suspiro. 

O sopro da vida. 

Da minha vida que, no caso, não possuía grandes expectativas. 

Poeira de astros, dizem que somos. Uma estrela morrendo, espalhando sujeira no Universo e vejam só a confusão. Quem será que fica para limpar a bagunça no final de tudo?

Uma golfada de ar. O fim do eu. Tão prepotente e somente um mísero sopro me separava do esquecimento total. Tentei forjar a indiferença com o momento saudada por Albert Camus e imaginar meu corpo apodrecendo, gradativamente, no fundo das águas. As feições disformes e torcidas em um último apelo. Os glóbulos oculares vazios e resquícios de tecido cutâneo flutuando ao redor. 

Não, não era para ser assim. Eu queria ser cremado, convertido - ou desconvertido - em átomos que não estariam mais interligados uns aos outros formando, de tal maneira, essa matéria que chamei de eu por alguns anos. A imagem aleatória de pequenas partículas soltando as mãos umas das outras, deixando de ser um para se transformar em cada qual, invadiu minha mente e eu precisei me censurar por tal mediocridade.

São meus últimos momentos, não demorará muito até que a ordem comandada pelo meu cérebro - cerebelo ou bulbo, aliás, qual a diferença mesmo? Ah, quem se importa, de qualquer forma, estou morrendo. Pesquisaria sobre isso se tivesse oportunidade, mas em vista da ocasião… Um pouco mais perto da morte e ainda divagando. Frustrante. - não aceitará mais uma recusa ao extremo apelo por ar. Quando isso acontecer, irei inalar grande quantidade de água e depois disso nada mais pode ser surpreendente. Como em um livro, no momento que você descobre quem era o assassino. Fim. Sem necessidade de dar continuidade. 

Me foi prometido um filme em retrospectiva da minha vida - a tenra infância, uma cena minha brincando de alguma coisa; a adolescência, alguns amigos ao meu redor, rindo abertamente - e até tentei induzir este palco, porém, quando mais precisamos, as melhores recordações nos escapam e somente a lista do super mercado lhe surge na cabeça. 

O cotidiano e as necessidades básicas sempre venceram a batalha contra o importante. 

Talvez eu devesse ter tirado um tempo nas minhas segundas para tentar entender qual o sentido de estar ali procurando pela ordem no caos. Tudo aquilo - estudar a vida inteira, ir à faculdade, conseguir um bom emprego, acordar cedo, ser o funcionário do mês, cuidar da saúde para prolongar meu papel de coadjuvante entre outras miudezas - somente para acalentar a ânsia de saber que, pelo menos, estou fazendo alguma coisa e não só parado, esperando o tempo passar. 

E o tempo passou, sem louvores, me arrastando para o fundo daquelas águas escuras. 

Meu lado poético gosta de enxergar, de vez em quando, o Universo no emaranhado de fios de cabelos negros de uma divindade melancólica. Planetas, luas e estrelas entrelaçados em seus cabelos. E claro, buracos negros em lugar de olhos. Por isso as pálpebras se mantêm fechadas em uma feição triste. Aqueles olhos já absorveram demais. 

Essa divindade me atrai mais que o deus da culpa, é reconfortante cogitar conhecê-la, mas então me recordo que ficarei somente deitado servindo de jantar às criaturas marinhas. 

E assim, sem nenhum filme da minha vida ou esclarecimento filosófico sobre a existência, cedi aos impulsos biológicos urgentes e absorvi o máximo que pude, roubando com grande gosto aquela porção de água para mim. Era só o que eu teria. 

Meu último pensamento foi para a divindade melancólica. Acho que descobri o porquê de sua tristeza. 

Ela sabia demais. 


A ignorância é uma bênção.

Um comentário:

  1. "Poeira de astros, dizem que somos. Uma estrela morrendo, espalhando sujeira no Universo e vejam só a confusão. Quem será que fica para limpar a bagunça no final de tudo?

    Uma golfada de ar. O fim do eu. Tão prepotente e somente um mísero sopro me separava do esquecimento total. Tentei forjar a indiferença com o momento saudada por Albert Camus e imaginar meu corpo apodrecendo, gradativamente, no fundo das águas. As feições disformes e torcidas em um último apelo. Os glóbulos oculares vazios e resquícios de tecido cutâneo flutuando ao redor. "

    Confesso que me faltou o ar ao ler esse trecho. Talvez seja porque tenho uma queda por esses detalhes que nos transportam a história. Poderia afirmar que estive ao lado deste corpo enquanto o mesmo cogitava sobre seu destino.

    Fantástico.

    Gabriel Pontes

    ResponderExcluir

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...