Escrita e gravada por belchior em 1976, essa música foi sucesso na voz de Elis Regina, e mais
recentemente Sandy Leah e Maria Rita, é poesia pura.
Tanto a letra como os
acordes são lindíssimos e conseguem me arrepiar cada vez que a
ouço. Há quem diga que a canção está fazendo uma crítica ao período do
Regime Militar e à perseguição sofrida pelos jovens da época, só
que essa interpretação é muito pobre e não atinge a
potencialidade genial de sua letra.
Não quero lhe falarMeu grande amorDas coisas que aprendiNos discosQuero lhe contar como eu viviE tudo o que aconteceu comigo
Observe como o eu-lírico está falando com “seu grande amor”, mas não quer lhe falar sobre poemas, coisas românticas (“as coisas que aprendi nos discos”), ele tem algo mais importante pra falar em sua música: sobre suas experiências e suas lutas. Na frente é justificado o porquê.
É
interessante tentar imaginar que são essas pessoas, apesar de o
tratamento carinhoso não parecem ser um casal, há quem diga que é
um pai falando com o filho (ou filha) sobre suas lutas e a vida hoje,
outros interpretam como uma pessoa já velha falando com seu “eu
passado”, ou seja, relembrando suas lutas e refletindo sobre elas,
como muita coisa aqui, vamos deixar essa questão em aberto – o
leitor que tire suas conclusões.
Viver é melhor que sonharEu sei que o amorÉ uma coisa boaMas também seiQue qualquer cantoÉ menor do que a vidaDe qualquer pessoa
Aqui ele explica porque não quer falar coisas românticas, “viver é melhor que sonhar”, ou seja, é melhor ver a realidade que se iludir com ilusões. “O amor é uma coisa boa”, mas a vida não se limita a isso e a arte, “o canto”, não deve se desvincular da realidade, afinal por menos interessante que a vida de alguém possa parecer, ainda é maior que ela.
Nessa parte que dizem começar a crítica ao Regime Militar que governava o país em 1976, mas “perigo na esquina” pode ser muito mais que isso – e apontar uma explicação única é limitar a obra – uma possibilidade pode ser o uso de drogas, afinal o eu-lírico está falando que a vida é melhor que uma ilusão; ou pode está falando das proibições que os pais fazem aos filhos jovens, afinal são eles (os pais) que vem perigo em cada esquina e não deixam eles viverem livremente (sinal fechado), além disso “Por isso cuidado, meu bem” parece uma frase de um pai falando com os filhos.Por isso cuidado, meu bemHá perigo na esquinaEles venceram e o sinalEstá fechado pra nósQue somos jovens
O
leitor escolhe a interpretação que mais lhe agrada, o fato é que
nesse ponto ele fala dos perigos que limitam os jovens, e que devido
as
estes
perigos,
ele fala com seu interlocutor sobre a vida e não fala canções de
amor.
Para abraçar seu irmãoE beijar sua menina na ruaÉ que se fez o seu braçoO seu lábio e a sua voz
Esses
versos parecem fora de contexto, mas tem um sentido lógico. Você
foi feito para amar (“abraçar seu irmão/ beijar sua menina na
rua”). Perceba que o eu-lírico está falando sobre a vida, porque
é mais importante falar sobre ela do que sobre músicas, sonhos; diz
que há perigos, mas, mesmo assim, os jovens não devem esquecer que
devem amar seus irmãos, terem relacionamentos amorosos – afinal
foram feitos para isso.
O interlocutor do eu-lírico insiste em querer falar sobre romances, mas ele responde que está pensando em coisas modernas, no futuro.Você me perguntaPela minha paixãoDigo que estou encantadoComo uma nova invenção
Eu vou ficar nesta cidadeNão vou voltar pro sertãoPois vejo vir vindo no ventoCheiro de nova estaçãoEu sinto tudo na ferida vivaDo meu coração
Prossegue
falando que não quer um ambiente de paz bucólica, afinal sabe que
estão vindo mudanças (“cheiro de nova estação”) e ele sente
tudo que está por vir, devido as suas experiências (“ferida viva/
do meu coração”)
Já faz tempoEu vi você na ruaCabelo ao ventoGente jovem reunidaNa parede da memóriaEssa lembrançaÉ o quadro que dói mais
De
todas as memórias que o eu-lírico tem, a mais dolorida é que não
encontra mais os jovens reunidos na rua, também seu interlocutor que
andava com os cabelos soltos quando outros (“gente jovem”). Aqui
também pode ser uma referência à repressão do Período Militar,
quando os jovens são proibidos de fazer reuniões; mas também pode
falar da violência que deixa as pessoas trancadas em casa – os
“perigos em cada esquina” de outro verso – ou devido às drogas
que tomaram conta deles – o mesmo verso do perigo pode ser
interpretado assim. Em suma, ele continua falando do que o atormenta
nos jovens de seu tempo.
Minha dor é perceberQue apesar de termosFeito tudo o que fizemosAinda somos os mesmosE vivemosAinda somos os mesmosE vivemosComo os nossos pais
O
que está claro aqui é que por mais que os jovens tentem ser
diferentes, procurem mudar o mundo, acabam cometendo os mesmos erros
que as gerações passadas. Por mais que queiram lutar contra o
sistema (seja lá que sistema é esse), ao virarem adultos percebem
que o mundo continha o mesmo.
Nossos ídolosAinda são os mesmosE as aparênciasNão enganam nãoVocê diz que depois delesNão apareceu mais ninguém
Continuando
o raciocínio anterior. Por mais que as pessoas pensem que mudam o
mundo, ele continua o mesmo, as mudanças que achamos que provocamos
são apenas “aparências” que não enganam. Os ídolos (que não
são apenas pessoas) considerados clássicos, são pura cópia dos
ídolos do passado, quem conhece literatura clássica sabe bem disso:
muito difícil um livro ou filme de hoje não ser inspirado em alguma
obra do período clássico.
Você pode até dizerQue eu tô por foraOu entãoQue eu tô inventando
O interlocutor não acredita muito nisso, e diz que é apenas invenção do eu-lírico, mas ele reage falando que
Mas é vocêQue ama o passadoE que não vêÉ vocêQue ama o passadoE que não vêQue o novo sempre vem
Como
eu já disse antes, apesar de tudo o eu-lírico é otimista. Ele vê
o perigo que os jovens enfrentam, sente falta deles e sabe que as
pessoas cometem sempre os mesmos erros – mas ele mantém a
esperança que tudo vai melhorar porque ele sabe “que o novo sempre
vem”.
Hoje eu seiQue quem me deu a idéiaDe uma nova consciênciaE juventudeTá em casaGuardado por DeusContando o vil metal
Aqui
o eu-lírico lamenta profundamente que os jovens da sua época, seus
heróis e suas referências (“quem me deu a ideia de uma nova
consciência”) se entregaram, estão apenas juntando dinheiro
“contando vil metal”, sem se preocupar com lutas ou com os jovens
de hoje “está em casa/ guardado por Deus”, ou seja, não está
na rua, lutando.
Minha dor é perceberQue apesar de termosFeito tudo o que fizemosAinda somos os mesmosE vivemosAinda somos os mesmosE vivemosComo os nossos pais
Com a constatação anterior, ele repete o que já lamentou antes: por mais que as pessoas lutaram, o mundo não mudou de verdade.
Belíssima música, ótima análise!
ResponderExcluirwww.sramaia.blogspot.com
Perfeito
ExcluirAmei a análise eu gosto muito desta música mas não entendia o que realmente ela queria passar obrigada.
ResponderExcluirEu acho o final é uma critica a igreja onde passou parte dajuventude. "...esta em casa guardado por Deus..."
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirCada um analisa como quer. A interpretação passa pelo filtro de cada um e a obra permite interpretações e adaptações com o nosso tempo. É uma grande obra, afinal. Entretanto, ser fiel à cognição nos leva à uma crítica direta ao regime militar que era a situação do período. A análise acima faria pouco sentido ná época.
ResponderExcluirParabéns pela feliz análise deste poema do grande mestre BELCHIOR, que no futuro por certo será reconhecido pela literatura, como aconteceu com o poeta americano Bobby Dylan.
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