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UMA CRÔNICA SOBRE ROSELI MACHADO - E, CLARO, SOBRE EDUCAÇÃO*

 *Este texto foi escrito por mim originalmente como parte da avaliação da disciplina de Metodologia do Ensino de História II, sob o título: "Um texto sobre Roseli Machado - e, claro, sobre educação".


        “A educação precisa ser presencial; é necessário o contato [com as pessoas]”, disse
Roseli [1] em uma noite abafada de domingo, através de uma fria tela de computador. O ensino
requer a presença do outro. A frase, é claro, ocorreu em um contexto de crítica ao ensino à
distância, esse que nos foi forçado goela abaixo devido à pandemia e ao caos em meio ao qual
vivemos. Mas muito além da necessidade do contato, Roseli me contou, o ensino à distância –
EAD – explicitou ainda a má distribuição de recursos materiais e as desigualdades sociais.
Afinal, quem de fato tem acesso à internet e um local de estudos apropriado em casa?


        Entrevistei a Roseli por cerca de uma hora e cinquenta minutos, como disse, em uma noite
quente de novembro. Em qualquer situação normal, provavelmente teria ido à casa dela para
nossa conversa; talvez nós tomássemos alguma bebida fresca ao longo do processo – ou talvez
ficássemos somente no café-e-água, que é o arroz-com-feijão da recepção de visitas; nos
cumprimentaríamos e despediríamos com algum contato, aperto de mão ou abraço – este último
porque Roseli fora minha professora anos atrás. Mas nossa entrevista ocorreu dentro da televisão-tela-plana-29-polegadas que utilizo como monitor.
        Tomando um café que deixei gelar de propósito por conta do calor, Roseli e eu
conversamos sobre educação. Ela me narrou sua trajetória como professora de história dos
ensinos fundamental e médio de dentro de um cômodo onde eu podia vislumbrar, através de
minha fria tela de computador, uma estante cheia de livros, à esquerda, e um mapa múndi
pendurado na parede à sua direita. Professores de história! Apesar da distância, a conversa me
pareceu agradavelmente próxima e familiar.
        Mas conversamos sobre educação. Sobre ensino de história. Sobre características desse
ensino que deveriam ser indispensáveis. Roseli lecionou durante toda sua vida profissional em
escolas públicas – municipais [2] e estaduais; regulares e de ensino médio integrado ao técnico – o
que faz com que sua visão de educação seja bastante única e inclusiva; tendo sido ela própria uma aluna de ensino médio técnico, vinda de uma família pobre, um fator que contribui, também, para
suas perspectivas sobre o ensino de história.
        Durante nossa conversa, percebi que Roseli atribui ao ensino de história o papel de
transformador da sociedade. Bastante freiriana, acredita que o ensino crítico de história – para
além do conteudismo – parece ser o caminho mais sólido na formação social e humana dos/das
estudantes. Muito parecida, também, com a visão de bell hooks sobre a educação, é claro. A
educação como vetor principal da liberdade, do pensar crítico e da inclusão [3]. O destaque aqui,
também, ao aspecto práxis; do agir revolucionário. “Freire tem de lembrar os leitores de que ele
nunca falou da conscientização como um fim em si, mas sempre na medida em que se soma a
uma práxis significativa” [4].
        A prática do ensino de história – e por extensão o papel do professor – avança para além
dos limites do ensino propriamente dito. Pensar uma educação que leve em conta características
individuais dos alunos – como perfil socioeconômico – é uma prática que naturalmente leva para
fora do ambiente limitante das quatro-paredes-da-sala-de-aula, e do conteúdo abordado dentro
dela. Lembro-me de Roseli contar de quando trabalhava em uma escola da prefeitura de Barueri,
no Jardim Maria Cristina (periferia da cidade); ali, ela disse que agia ainda mais como assistente
social do que como professora.
        A escola é localizada em uma região vulnerável da cidade. Periferia. Roseli lidava
diariamente com alunos vindo de lares instáveis e de situação sensível. Como ensinar o conteúdo
exigido pelo currículo desta maneira? Roseli tornou-se próxima dos estudantes. Tentava auxiliálos
em suas questões pessoais ao mesmo tempo em que traçava paralelos entre suas realidades e o
que precisava ensinar. Sempre escancarando as estruturas que mantinham o capitalismo e a
desigualdade, o primeiro sendo responsável em grande conta pela situação precária de vida dos
alunos.
        Os alunos gostavam muito dela por isso – e por outros motivos também. De que forma
não gostariam? Na verdade, ela me contou que era tão querida pelos alunos que tinha autorização
para subir o morro para a escola, à pé, sem ser incomodada no meio do caminho. Ainda, ganhou
de presente de um dos estudantes uma “bala perdida” de um tiroteio que havia ocorrido no bairro,
no dia anterior. A realidade daqueles alunos a encarava de frente todos os dias. Como se
preocupar com conteudismos nesse contexto?
        Não se preocupa.
        Ainda bem.
        Tomo um longo gole de água enquanto faço uma pausa da escrita deste ensaio. Respiro
fundo. A realidade material de seus alunos e sua influência no processo de aprendizado está
intimamente relacionada ao projeto o qual o professor quer/ pode desenvolver com os estudantes.
Roseli, por exemplo, defende um levantamento socioeconômico dos alunos no ato da matrícula,
para que professores e gestão escolar consigam desenvolver práticas de ensino-apendizagem mais
eficientes. Isso é, de fato, um ensino engajado. Como marxista que é, Roseli não deixou nunca de
levar em conta a realidade material de seus alunos em suas práticas de ensino.
        “Professora, passei em Química na USP”, disse um aluno a ela certa vez [5] – isto,
novamente, ela me contando através de sua versão zeros-e-uns na tela. Também contou que a
mãe o questionou sobre fazer a graduação: “Ninguém na família fez, mesmo”. Roseli, por sua
vez, encorajou o garoto. E ele foi. Defende com unhas e dentes o acesso às universidades
públicas por alunos de escolas públicas. Considero esse, entre tantos outros atos narrados por ela
durante nossa conversa, um dos mais revolucionários. O incentivo ao estudo; à pesquisa; à
rebeldia. Ela me disse que precisava mostrar para os alunos de ensino médio-técnico que eles não
eram somente mão de obra obediente; que eles deveriam olhar mais alto. E sempre mostrava.

        Roseli, pelo que notei durante nossa conversa, sempre fora engajada - desde a juventude.
Ao entrar na graduação e durante, esteve muito envolvida com o processo de redemocratização e
as pautas que então eram discutidas na época - democracia, liberdade de expressão, o mundo do
trabalho, sindicatos, organizações. Isso talvez ajude a explicar sua visão do ensino de história
como um ato político. Como uma forma de ampliar a democracia e o acesso, por parte dos alunos
de escola pública, a espaços que lhes foram historicamente negados. Como prática
revolucionária, até. A práxis da militância aliada à práxis educacional. Da educação libertadora.
        Falar sobre ensino de história é também falar sobre a trajetória pessoal da Roseli; de como
ela influenciou sua maneira de lecionar; de como ela reflete o que ela acredita. E que eu acredito
também. O ensino de história precisa ser crítico. Revolucionário. Inclusivo. Democrático.
Características bem bell hooks e Paulo Freire, mesmo. “Educação libertadora”. Uma forma de
modificar a realidade ao redor também, através dos alunos. “Eu tenho fé na rapaziada”, disse
Roseli com um sorriso no rosto durante nossa conversa. Seus olhos cintilavam.
        Encaro o monitor por um longo segundo. Respiro fundo. Ainda está muito quente, mas
uma brisa muito leve e fresca entra pela janela telada do apartamento. Sorrio.
        Talvez eu não tenha mencionado ao longo deste texto que Roseli se aposentou
recentemente. Tem aproveitado o tempo em casa na quarentena para fazer cursos online e
aprender sobre aquilo que ainda não domina. Principalmente sobre pautas que não eram
discutidas com tanto enfoque durante seu período de militância. Feminismo, gênero, estudos
LGTB etc; as “pautas identitárias” que não são muito bem quistas pelo marxismo mais
tradicional. “Essas questões de gênero e tudo eu tô querendo entender melhor”, ouvi sua voz
dentro do fone de ouvido. “Não é [muito] da minha época essas coisas. Vai que eu acabo falando
besteira por aí e acabo ofendendo as pessoas, porque eu sou ignorante mesmo nesse ponto”.
        Também começou a desenvolver projetos de grupos de estudos e debates sobre temas
diversos com as pessoas do bairro que mora, em Jandira. A pandemia colocou um duro freio no
projeto, mas Roseli segue estudando e se preparando para quando puder debater novamente com
o público. Além disso, ela ajudou a criar um coletivo de mulheres da zona oeste da região
metropolitana, para - justamente - discutir feminismo a partir de suas realidades materiais. Fazer
o que ama.
        Olho pela janela e sinto a brisa mais uma vez.
        Professores! Professores de história! O que seria do mundo sem as Roselis?

 

[1] Roseli Machado é formada em História pela PUC-SP. Foi minha professora no 3º ano do ensino médio (2014) no ITB – Instituto Técnico de Barueri: Brasílio Flores de Azevedo.

[2] Em nossa conversa, Roseli mencionou o trabalho em escolas da prefeitura de São Paulo na época do
governo de Luiza Erundina, e de Barueri – nessa incluindo o ITB em que estudei, mantido pela prefeitura da
cidade.

[3] hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017. Importante lembrar que a própria bell hooks é leitora e defensora das ideias de Paulo Freire.

[4] Idem, p. 68.

[5] Um estudante da escola em que estudei – O ITB.

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